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Vou Precisar



Eu estava caminhando por aquele corredor frio do qual eu nunca gostei e acho que nunca vou gostar. Nele, as pessoas nem se quer se entreolhavam, estavam tão mergulhadas e imersas em seus próprios problemas que, era difícil notar que existia vida naquele lugar. Que ironia. Se bem que, o que poderia se esperar de um corredor de hospital, se não tristeza? A ironia vinha da felicidade de alguns em receber a vida, na forma de um bebê ou de uma cura. Você já deve imaginar que este não era o meu caso. E provavelmente não era o caso também dos três ou cinco que eu vi arrastando os pés por aquele chão diária e incansavelmente branco e limpo. 

Esfreguei a ponta dos dedos entre os seios e respirei lentamente para ver se doía um pouco menos. Mas não adiantou. Dei mais alguns passos e abri a porta do quarto onde dormia há 2 dias. Você não estava lá. Provavelmente conversava com algum médico naquela imensidão mórbida. Suspirei e fechei a porta. Sentei por alguns instantes na cama e toquei meus cabelos, secos, sem brilho e sem vida. Molhei os lábios lentamente e fechei os olhos por um instante. Me perguntei se era justo. Meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho da porta se abrindo novamente. Olhei para você, ansiosa. Mas não houve retribuição. 

— E então? O que disse o exame?

— Ah... nada ainda. Os médicos dizem que você está perfeita. Sua saúde é melhor do que a de 90% das pessoas aqui dentro. 

— E como explicar essa dor? O pânico, os choros, a tremedeira? 

Você não quis responder. Na verdade eu acho que não soube, porque balançou a cabeça negativamente e segurou minha mão como se quisesse dizer: "Eu não sei, mas eu estou aqui". E eu juro que era disso que eu tinha medo. Medo de fazer você ficar. De te levar para um fundo onde nem eu, nem você, veríamos a saída. Eu não sabia dizer se eu suportaria, não a dor, mas você. Não sei dizer se suportaria ver você sofrer. Mesmo sabendo que fazia de tudo para não demonstrar. Eu sei que achava mesmo, que eu não te via pelos cantos da casa chorando sozinho. Eu sei que, as vezes, sorria para evitar uma lágrima minha. Sei que por várias noites, você se assustava com meus gritos dos pesadelos e corria pela casa derrubando todos os remédios, a procura do meu calmante e que quando não encontrava sentia até um pouco de alívio por ter que sair no meio da noite para comprar porque os meus gritos eram o seu abismo. Te fazer sentir impotente diante de mim, me fazia sentir a pior pessoa do mundo. Ah meu Deus, e como eu me culpava.

Eu te olhei compreensiva e triste. Não consegui suportar a onda de dor aguda que vinha me atingir o peito como as águas do mar enfurecidas atingem as pedras na costa. Fechei os olhos e senti os lábios tremerem com força, baixei a cabeça e eu poderia me atirar dali mesmo, de cima daquela cama alta, torcendo para cair de cabeça e morrer logo. Mas você nunca deixaria isso acontecer, então antes que a primeira lágrima queimasse meu rosto você já estava lá, me amparando com seus braços que nem era tão fortes assim, mas que eram a minha força. Eram tudo que eu tinha. Já que meu problema de fato era não ter nada. Mesmo sabendo que você sempre significou tudo. Entre soluços eu quis ser decisiva... 

— Eu não quero mais, eu não aguento mais... dói muito, tá doendo muito! 

— Eu sei, eu sei... amor, eu sei... 

A agonia na sua voz me cortava como uma lâmina afiada. Eu sentia no seu desespero o crescer do meu. Eu sentia na sua insegurança, a minha responsabilidade. Mas passou.

O dia amanheceu e você tinha dormido lá mesmo. Acordei amarga e meio mal humorada, apesar das suas inúmeras tentativas de me fazer sorrir. Sim, por que você gostava de fazer assim, de me comprar doces, de por músicas que eu gosto no carro, de me contar piadas... mas não adiantou. Foi quando chegamos em casa. A nossa casa. Você lembra que era nosso sonho? Lembra? E a gente achava que nunca ia dar certo. Pois é. Você abriu a porta do carro para mim e me pediu para olhar o céu, que naquele dia estava azul, azul... como a cor dos seus... 

Eu não olhei.

— Eu não posso mais fazer isso. Não posso mais... tá me machucando mais do que essa maldita dor ridícula que não me deixa dormir. Eu não quero mais nada disso. Eu não quero o seu amor, eu não quero o seu  carinho, eu não quero a nossa casa, eu não quero esse céu azul... eu não quero mais você.

— O QUÊ? — Você me olhou horrorizado, e eu quase me desmanchei no chão de tanto chorar. 

— Amor... eu não posso mais.

— Você está maluca, ALTERADA, para de dizer essas coisas, me machuca assim. Ei, não chora! Não chora, vem cá. A gente vai achar de onde tá vindo esse problema, viu? Vai ficar tudo bem, você não acredita em mim? Confia em mim.

— Não. Eu não acredito... PARA de mentir pra você. Eu não posso te tomar mais esse tempo, essa paciência que você poderia estar gastando com alguém que realmente vale a pena, ou que tenha solução.
—Nã...

— NÃO! Não fala. Não dá mais...

— Porque?

— Porque eu preciso de você.

— Eu TAMBÉM preciso de você!

— O problema é que eu vou precisar muito mais!!

— (...)

— (...) 



(O resto dessa história ninguém nunca soube, ou ouviu falar. Alguns dias depois, o silêncio tomou conta da casa do jovem casal, que não eram bem um casal. Nunca mais ninguém o ouviu sair de carro na madrugada, porque provavelmente ele nunca mais a ouviu gritar à noite.) 

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