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Medo Do Escuro




No dia que você resolveu ir embora, eu não sabia. Acho até, que nem você sabia. Naquele dia eu não teria deixado você sair de casa, não teria evitado te ligar ou te mandar mensagens por toda a manhã só para saber se estava tudo bem. Se eu soubesse, eu teria dito logo tantas coisas. Teria dito para não esquecer a toalha molhada em cima da cama, teria dito para lavar a louça de ontem à noite, dito para levar um casaco de frio, mesmo sabendo que estava muito calor lá fora e teria dito de uma vez por todas que amava você. Não guardaria dentro de mim essa culpa velada que me sufoca agora a todo instante, como uma tosse seca.

Naquele dia você tinha acordado atrasado, e eu até estranhei porque se tinha algo que eu admirava em você, era essa sua organização, essa pontualidade com tudo, inclusive comigo. Engraçado né? Quando o sol nasceu você não despertou, e por não dormirmos no mesmo quarto, também acabei deixando a hora passar. Tomou café correndo e nem lembro se penteou o cabelo. Ah se eu soubesse.

Teria te abraçado com mais força, sentido melhor o seu perfume que ficou lá, em cima da sua cama, jogado. Teria dito: “fica, o dia tá tão bonito.” E eu sei que você ficaria porque daí saberia que não era por mim, e nem por você, seria por nós. Por tudo que você arrastou por aquela porta quando saiu com uma torrada nas mãos. Por toda a dor que você sempre me causou, mesmo quando eu mentia dizendo que “tudo bem” de você sair com uma ou outra garota naquela noite e levar ela lá em casa. Por todo o ódio que eu senti de você todas as vezes que eu me atirava em cima do colchão chorando bem baixinho para não ter que te dar satisfação. Por essa agonia venenosa que tomou conta dos móveis, das roupas, de mim, da gente.

Porque você não me deu tchau e nem sequer até logo. Porque você prometeu que me protegeria e que estaria aqui, estaria lá, estaria em qualquer lugar para mim. E naquele dia quando você resolveu ir embora e pegar aquele ônibus, porque você falou? Por que não ficou quieto como eu sei que costumava ficar? Por que o seu senso heroico resolveu acordar naquele dia e reagir àquele assalto? Por que tomou aquele tiro? Ein?

Olha, eu estou aqui, na nossa casa... Jogada no chão te fazendo e me fazendo todas essas perguntas por que a bala que te atingiu também me perfurou. E ela tá girando para dentro da minha pele e queimando tudo. Os meus sonhos, a minha confiança, a minha autoestima. Você prometeu que estaria aqui. E eu acreditei. E no outro dia você me perguntou: “Está estranha, faz uns dias, não tem nada pra me falar? Você é minha melhor amiga, sabe disso, confia em mim”. Eu segurei sua mão, beijei e chorei no seu ombro e respondei: “Tem nada não, tô com saudade da minha mãe”. Eu deveria ter dito: “Tem nada não, é que eu tô apaixonada por você.”.

Olha, quando você resolveu me deixar você desligou a luz de casa. E você sempre soube que é do escuro que eu tenho medo. E sei lá, onde quer que você foi, eu nunca vou te perdoar.

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