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Agonia boa


Ela sentia como se seu corpo estivesse sendo esvaziado. Já fazia algum tempo que estava assim e, embora não gostasse daquilo, insistiu em ficar. Estavam sentados no sofá da casa dele, tinham de terminar um trabalho. Ele redigia, enquanto ela devorava textos e mais textos e de hora em hora lia o que já havia escrito ou revesava e tomava o posto de redatora. Não havia absolutamente nada de estranho naquela cena. Pelo menos não aos nossos olhos, contudo, dentro dela, uma verdadeira "agonia boa" transitava desesperada. Aquela aproximação era algo incomum em sua mente, suas mãos suavam e ao mesmo tempo que lutava para se manter concentrada na responsabilidade que tinham pendente deixava que todo seu corpo se deixasse levar pelo cheiro do perfume que ele pouco usava. A ponta dos seus dedos as vezes passavam pelos fios daquele cabelo, como se tirasse algum fiapo, mas na verdade era só o desejo de tocá-los mesmo. Foi num desses momentos em que ela, distraída, olhava o rosto do rapaz fixamente e ele no impulso de lhe dizer algo encontrou aqueles olhos.

A única coisa que ela desejava é que ele entendesse, que visse, que percebesse, que ela estava ali, sempre esteve. Ficou sentada por horas e o choro preso na garganta lhe fazia sentir dor. Não queria chorar. Não podia chorar, nem mesmo tinha razões para isto. As especulações que havia feito eram baseadas naquele seu passado medonho que já deveria ter sido esquecido. Seu rosto ficou corado e quase que involuntariamente desviou os olhos no mesmo instante e deixou-os fixos no chão. Um medo avassalador tomou conta de todos os lugares por onde seu sangue percorria. Percebeu que ele apenas movimentou o computador que estava em seu colo para a mesa do centro. Fechou os olhos por segundos, temia que o rapaz tivesse percebido algo e levasse consigo uma impressão negativa, mas ele continuou sentado. Uma das mãos dele tocou a pele gélida dela. Neste instante o coração da garota acelerou de tal modo que quase perdeu completamente o ar. Seus olhos lentamente foram em direção aos dele e pela primeira vez pôde lhe dizer em silêncio o quanto o queria. Nada foi dito, nem mesmo os carros na rua que costumavam ser irritantemente barulhentos, se atreveram a interromper aquele momento. O rapaz sorriu e sussurrou "Ei... está gelada. Não tenha medo..." e no segundo seguinte seus lábios aqueciam os dela. 

Os céus mais uma vez lhe fizeram o favor de acompanhar seus pensamentos e em instantes gotas fortes e entristecidas vinham à terra. Fortes. Pesadas. Receosas. Apaixonadas. Lembrou de coisas que jurou esquecer, e de momentos que por melhores que tivessem sido gostaria de queimar no tempo. Não lhe restavam muitas alternativas, teria de conviver com aquilo até que pudesse colocar um ponto final em mais um dos teus bordados feios e inacabados. O sol que havia tocado sua pele naquele dia era o único capaz de aquecer seu maldito coração risonho. Beijou-o com desejo, com ardor, e com saudade, pois sabia que pelo menos para ele quando o sol voltasse a nascer na manhã seguinte, aquilo não teria significado nada. 

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