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Ela venceu


We were born sick
You heard them say it
My church offers no absolutions
She tells me: Worship in the bedroom ♪

Saber como começou é um mistério. Pode ter sido naquela bronca desnecessária; no pedido de algum doce na rua; no olhar inocente para salgadinhos e guloseimas no supermercado, seguidos de um “nem pensar, mocinha”. Não tem como saber. A compulsão alimentar tem muitas formas de reivindicar seu espaço. Vem ardilosa, às vezes como um ato de “rebeldia”, às vezes sem motivo nenhum, só vem e preenche tudo, como um tsunami de magnitudes nunca vistas. 

No caso dela não foi diferente. É quase cruel como crianças conseguem perceber suas privações e encarar isso como um ataque. Sorrateiro como uma cobra no mato, o sentimento de que algo não está certo é inevitável: por que nunca podia ter coisas gostosas na sua lancheira da escolar? Por que nunca podia comprar os lanches na cantina? Porque nunca podia tomar refrigerante aos finais de semana, como todo mundo? Ela não entendia. 

Mesmo assim, mesmo diariamente aceitando os “nãos” como uma verdade, o corpo não aprendia, se rebelava e engordava. Crescia rápido, mais do que os outros e chamava a atenção. Os comentários então mudavam: “gorda, baleia, saco de areia; vou te jogar pelo morro para ver se você rola”, “qualquer hora, você vai explodir de tanto comer”; “se você não se amar, quem vai amar?”, “daqui a pouco você vai perder todas as suas roupas”. 

Devagar, ela ia travando uma batalha invisível, com destino e resultados certos, conhecidos. A comida tomava seu “lugar de fala” nos traços do corpo de criança, depois nas semi ondas do corpo de adolescente, que mantinha quase uma relação de "Síndrome de Estocolmo" com a dita: comia o máximo que podia, comia escondido, guardava mesada para comer, escondia comida no quarto; tanta coisa. Mastigava e engolia os sentimentos todos, a alegria, a dor, a tristeza, a vergonha, o medo, a raiva. Misturava-os com a farinha e cultivava no estômago.

Assim, a gestação seguiu. As semi ondas deram lugar às curvas do corpo de mulher, e a comida estava ali, ainda mais fortalecida, madura, confortável. Agora não tinha mais medo, nem vergonha. Usava qualquer motivo para subir no palanque e dominar a cena. Tão boa atriz que enganava inclusive a própria dona do teatro. Era sempre uma sensação de alívio, que logo depois dava lugar a uma culpa inexplicável, sofrível, fúnebre. 

Ela venceu. A batalha foi terminando e com ela, surgindo as doenças, os diagnósticos previsíveis, a obesidade, a diabetes, a ansiedade, o humor depressivo, todos, filhos paridos dessa gestação tóxica. O teatro finalmente ganhou sua cena final, e a cortina que daria fim a ele ficou 40 kg mais longe, mais pesada e inalcançável. Ela venceu. Tirou a motivação, a fé, a expectativa, a saúde e o amor-próprio.

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