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Minha morada




Cause you make the darkness less dark
You make the edges less sharp
You make the winter feel warmer
You make my weakness less weak
You make the bottom less deep
You make the waiting feel shorter
You make my crazy feel normal, every time
You are the who, love is the what, this is the why

O cheiro doce do dia amanhecendo é o primeiro som capaz de nos fazer despertar. As mãos magras e firmes dela estão esticadas sob o travesseiro. Seus olhos estão fechados mas sei que já está acordada. A respiração mudou, é como se ela tentasse enxergar enquanto fareja sob a cama. Seu corpo se move em minha direção e eu, por mais alguns instantes, me mantenho inerte. Aos poucos, a resistência me desabita e de repente estou aninhada em seus braços. Estou meio de lado e minha camisola está enrolada até o meio das coxas. A alça do braço esquerdo está caída e mesmo sem olhar, sei que sabe de todos esses detalhes. 

Os lábios dela são macios e têm um gosto de fruta da estação, fresco e doce. Sorrio ao sentir a ponta de seus dedos desenhando as linhas da minha cintura. Um "eu te amo" tímido e íntimo invade meus ouvidos e então o coração explode e acalma ao mesmo tempo. Ela sempre teve esse poder, desde que a conheci. Esse poder de fazer as coisas mais grandiosas do mundo em pequenos gestos. Mesmo quando eu não sabia, era amor. Na conversa tímida pelo celular, no riso solto que ela sempre teve quando eu chegava perto. Também era amor quando ela me via entrar em sua sala de trabalho apenas para dizer "oi" e seus olhos brilhavam como quem convida "fica mais um pouco?". Era amor desde a primeira música ao vivo em um planeta distante chamado Júpiter. Em cada palavra carinhosa, nos pedidos de "desculpa" sem necessidade, no respeito acima de todas as coisas, no mundo completamente inédito e florido que ela me fez encontrar dentro dela. 

Ali, naqueles braços, o peito aperta e a respiração desacelera. A mente desliga e mais nada importa. Só existe o nosso alento, seu toque carinhoso e a vida sorrindo para nós atrás das cortinas. Aprendi a viver assim com ela. Aprendi a, mesmo ao seu lado, me bastar dentro de mim mesma. Acordar e perceber a vida em pequenas gavetas, mesmo que façam parte de um mesmo guarda roupa imenso. Cuidar de cada uma delas com cuidado, entusiasmo e dedicação. Aprendi também que posso ser amada e que tudo em mim é apaixonante, desde o meu riso, o jeito despojado de falar, meu cabelo crespo, as curvas gordas e até meu ronco noturno por conta dos problemas respiratórios. E que todos podem se apaixonar por mim, principalmente eu mesma, todos os dias da minha vida. 

A minha morada, me ensinou a ponderar antes do impulso da ação, da palavra. A pensar, medir, pesar e às vezes desistir. Afinal, desistimos de alguns começos para garantir finais muito mais felizes, mesmo quando eles são efêmeros. Entendi ao lado dela que todos os dias vão ser felizes, mesmo quando são tristes e essa tristeza é um estado de espírito mais do que permitido, é necessário. Isso quer dizer que quando compreendermos que estar triste ou decepcionado nos permite a benção da escolha, tudo pode ficar muito melhor. Escolha lidar com isso agora ou depois; tenha consciência de que os outros caminhos continuam andando mesmo quando aquele emperra; não se desespere, não chore demais, não se entregue demais, não se deixe acostumar com o sabor do sofrimento, nenhuma flor sobrevive com excesso de cuidado. Tem calma. 

Enquanto o dia amanhece preguiçoso, o olhar atento dela me mapeia. Analisa os vales mais profundos, escaneia cada pequeno território e cria relatórios automáticos a cada visita. Ninguém nunca soube tanto de mim e nunca me ensinou tanto sobre mim mesma. Observar. Observar também foi algo que aprendi com ela. Os movimentos, os detalhes, as palavras, as expressões, a forma de se sentar, a pele arrepiando durante uma música nunca escutada, as histórias contadas, as experiências guardadas, os medos, segredos, o corpo. Qual é a temperatura da pessoa que você ama? Que cheiro tem o cabelo dela? Como ela gosta de sua bebida? O que tem por trás daquele "deixa pra lá..."? Quantas horas ela passa te vendo dormir? Por qual motivo ela é tímida às vezes? Ela prefere músicas agitadas ou mais lentas? Ela reconhece que você também a ensinou muito? O amor é como o primeiro dia de aula em uma escola nova todos os dias. Tudo depende do quanto você está disposto a fazer este ser um dia incrível. Algumas coisas podem dar errado, é normal e que bom que dão. Mas volte para casa querendo estar lá no dia seguinte, e no outro e mais um e depois também. 

Li em algum lugar que algumas pessoas moram perto, outras moram longe e tem gente que mora na gente. A minha morada mora em mim e eu moro nela. Se você encontrar a sua, construa uma casinha no campo, com duas cadeiras e uma rede na varanda. Tenham um cachorro e um cantinho para alimentar os passarinhos que ali decidam pousar; toda vida com felicidade gratuita será bem vinda. Limpem a casa juntos, ouvindo a própria música, cantada por vocês mesmos. Cozinhem o que tiverem vontade, sentem-se no chão da sala e riam de si mesmos. Abram um vinho especial às vezes, brindem uma ou duas taças. Briguem, durmam um no sofá e o outro no quarto. Acordem pela manhã recebendo uma flor colhida do jardim como pedido de desculpas e chorem. Se abracem com força, façam um chá, sentem-se para ver o por do sol na varanda e digam que se amam. A gente só mora de verdade em quem é lar e lar, é sagrado, é o nosso melhor lugar no mundo todo. 

A minha morada é namorada e a gente vive em uma casinha muito linda dentro de nós mesmas.

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